Dramaturgia

68.com.br
Texto e Direção de Ricardo Guilherme 1998

68.com.br investiga o significado dos fatos que marcaram o ano de 1968, a partir de depoimento personagens que protagonizaram a revolução política, artística e comportamental anterior e posterior à promulgação do Ato Institucional Número 5 (pelo Governo Militar), reconstituindo assim o ano-síntese da trajetória de uma geração que no Brasil e em todo o mundo encarnou não apenas a vanguarda de uma militância revolucionária de esquerda mas também a transgressão dos modos de produção dos bens culturais. O texto faz, através da fala de militantes, uma revisão da história brasileira de 1968 até a atualidade, dando oportunidade a que seus protagonistas se expressem autocríticas e análises comparativas entre o espectro de ideais emblemáticos da Geração Meia Oito e as idéias representativas do pensamento contemporâneo. Trata-se, pois, de um painel histórico que, além de reconstituir uma época, reelabora os paradigmas legados pelo tempo e os redimensiona à luz da contemporaneidade.

UMA SOBREVIVENTE
Eu fiz amor; não fiz a guerra. Fui marginal e maldita. Mas não fiquei perdida na noite suja; eu lavei a noite e a alma. Não fiquei me guardando pra quando o carnaval chegasse; eu arrombei a festa e fiz logo a farra. Não fiquei como o Pedro Pedreiro esperando o trem; peguei o bonde da história e pela contramão, atrapalhando o tráfego, eu disse a mim mesma como disse o poeta: com licença, com licença, tenho pressa de viver. Pra mim, o sonho não podia acabar. A liberdade era uma calça velha azul e desbotada, boca de sino, e eu me dei de presente o algo mais que a Shell não dava: fui realista e vivi o impossível: desbunde, piração, lombra, LSD, Pasquim, geléia geral, jeans, pé no chão, anéis em todos os dedos, colar de índio e chapéu de cowboy, black power, black is beautifil, super-8,  marginália, udigrudi, woodstock, mochila nas costas e cabeça a mil. Nós éramos todos do jardim da infância quando a Redentora endureceu e fez a crônica da nossa morte anunciada: cassetetes, fuzis e metralhadoras, bombas de gás lacrimogêneo, brucutu, fileira de Rintintin rosnando e latindo, cavalaria no asfalto, molotov hasta la victoria siempre e sempre de boina estrelada. Mas Mataram Che Guevara, mataram Luther King, mataram Edson Luis e ele poderia ser seu filho e qualquer um deles poderia\ ser qualquer um de nós. Os velhos no poder e os jovens no caixão. Mas eu sobrevivi. Sobrevivemos. E estamos aqui fazendo o caminho de volta.


A DIVINA COMÉDIA DE DANTE E MOACIR
Texto, Direção e Atuação de Ricardo Guilherme 2000

Dante Alighieri,(1265-1321) poeta italiano, autor de A Divina Comédia (poema épico escrito entre 1307 e 1321), e Moacir, personagem do romance Iracema( publicado em 1865) de José de Alencar (1829-1877), filho de Iracema e Martim Soares Moreno, fazem uma viagem ao céu, onde Deus espera o prototípico cearense para um acerto de contas sobre a condição de judeu errante que caracteriza a cearensidade. Moacir e Dante percorrem, então, os tortuosos caminhos que os levam ao paraíso, passando pelo Purgatório, Inferno e Limbo. Após o diálogo com Deus, Moacir volta à Terra.

DEUS
Eu tinha umas coisa pa te dizê e rô dizê, de A a Z,  que eu ainda num tô broco. É que tem vez que eu me faço de môco, mas eu te cunheço, bicho bruto. É que tem vez que eu fico puto, saltimbanco. E do alto dos meu tamanco, eu rô te dizê o que é da minha conta, do meu rosaro e dos meus buzo. Lá rai. O que é do meu abuso, é esse teu entra-e-sai. Só porque tu ficô sem mãe e teu pai, o Martim, te amostrô muntas légua e légua sem fim. E assim, tu mora andano, sempe arribano,  hôme de Deus.
MOACIR
Deus dos Hôme, desse angu o sinhô tombém come. Intão num me jogue péda, num me bote arreparo. Eu num paro, eu num paro, mar o sinhô tombém desarreda. Nisso o Sinhô tombém num é santo. O Sinhô tá im tudo quanto é canto.


BRAVÍSSIMO
Direção, Atuação e Dramaturgia de Ricardo Guilherme  1997

Inspirado no estilo de Nelson Rodrigues, o texto aborda antropologicamente o Brasil, mas não  circunscreve esta abordagem à visão de uma época específica, pois seu enfoque transcende reconstituições históricas, análises políticas conjunturais, de alcance imediatista, para fazer uma espécie de psicanálise da alma brasileira, circunscrita à idéia de que a superação do nosso complexo de inferioridade é a pedra angular, o alicerce de uma nova experiência humana.
A peça configura o discurso de um narrador que se refere a duas concepções diametralmente opostas: o olhar daqueles que menosprezam o nosso país e  o olhar daqueles que acreditam na transfiguração de seus problemas estruturais. Converte-se, assim, o espetáculo na demonstração de um dilema: a admiração e a recusa da auto-imagem do Homem Brasileiro.


O brasileiro, o que é o brasileiro? O que tem sido o brasileiro desde a carta de Pero Vaz de Caminha? Bem, desde a carta de Pero Vaz de Caminha
o brasileiro é aquele que, ao contemplar-se diante do espelho, cospe na própria imagem e contempla o próprio cuspe a escorregar no espelho como uma gosma asquerosa sobre si mesmo.(...) O brasileiro tem o que eu poderia chamar de complexo de gata borralheira. O que vem a ser esse complexo de gata borralheira? É o seguinte. É que o brasileiro parece uma Cinderela que está sempre ouvindo um imaginário sino dar as doze badaladas da meia-noite e sempre perde o seu sapatinho de cristal por ter uma espécie de reflexo condicionado que o faz, em plena festa, correr atônito, ao pressentir que das cavernas da sua alma vai emergir o borralho.