A ESPONJA E A ÁGUA
Conto de ouvir dizer de um arataca de antigamente, vivente do meio das locas, na fundura das pedras. Seu corpo? Carcaça em movimento e gesto. Fala? Nem tantas. Mãos em concha, unhas de há séculos e dedos de crispação, alguma largueza de ombros e passadas de quase gigante, imprimindo rastros, sobrancelhas da pré-história, cabelos de fartura na trunfa. Baila às vezes sem música, em roda, marcando com o tambor das palmas os passos que traça no barro. Doutra feita, os braços se agitam como se quisessem se apoderar de algo. Quando come, come fruto tirando do pé. Quando se banha, é de tibungo na lagoa. A língua se estira a esmo, de insulto, ao passante de ocasião.
Aquilo nem agrava o siso do povo do povoado, que tem o arataca na conta de um menino velho, que faz o que faz por fazer e que, sobrevivendo assim, no bruto natural das coisas, fica a mercê do que inventa. E é cada invenção.
Dia desses, deu de olhar Iaiá, num desses olhares de estranheza, de quem descobre entre as ramas uma florzinha, e, surpreendentemente, desta vez não macaqueou trejeitos, arremedando com mangoça. E então sossegou em silêncio, serenando as pernas que sempre estiveram em coreografia de arruaça. Não, agora não, nada daquelas momices de curumim. Foi como se, de repente, tomasse tento e virasse macho, por encanto.
Iaiá baixou a vista, fugindo da mira do seu mirar mas quando tornou a encarar, pois não é que lá permaneciam os olhos dele nos dela, interrogando, sem pestanejar ? Ela que nem era moça direito e nem conhecia de homem as artimanhas, engoliu no seco, para não falar: nunca me viu não? Nem maldou que ele reparasse.
Botava corpo a menina, verdade se diga. Porém, não se notava. Somente quem atinasse depois de muito reparo. Não era dessas de peito com as pontas apontando na fazenda do corpete. Corpinho seu, em acanhamento, só de longe prometia novidade vindo, mas o tal arataca, apesar desse de-longe, previu a promessa. Se enxerir não se enxeriu, e nem tinha cabimento enxerimento praquela. Se fosse pruma espilicute qualquer, vá lá que fosse. Tem umas que mesmo não estando todavia nos conformes ficam se mostrando pras outras, com conversa de rabicho.
Aquela, não. Iaiá não malinava, a não ser em malinação de pixota que ainda não sabe o risco de ser o que será. No entanto, ali, a hipnose daquele olhar de boto confirmava o viço.
Olho contem magia, enfeitiça, e aquele de tirar retrato, em minúcia, acabrunha porque desnuda e profana, vampiriza o olhado. E Iaiá sentiu-se assim, sem sangue, embora não compreendesse o vampiro. Ela, que sempre zanzava, não se cabendo dentro de si, num lá-se-vai e lá-se-vem, aquietou-se. Quedou-se outra, enfeitiçou-se.
Transfigurou-se também o arataca, dando de ficar – ao invés do alvoroço de costume – horas e horas a fitar o nada, como se esperasse acontecimento.E aconteceu: reencontraram-se. Nos dois, a esponja onde se entranha o desejo, quando se represa, derramou a sua água. E enfim, sem palavras, no mansinho da boca da noite, sagrou-se o ato: de Iaiá perdeu-se o lacre. Pra quê a membrana? Abriu-se, desbravou-se a carne e seu primeiro homem instalou-se, devassando reentrâncias, penetrando recônditos, até rasgar-se o véu da caverna.
INMARIA ou O SI E O EM SI
Além de ser uma pessoa, mulher é um lugar, a eldorado, o onde: pronde vai leva consigo a paisagem que transplanta, e, sendo matriz, aconchega em si um mundo à parte que lhe entra pela fresta da carne. Esta fresta entreaberta contem o ímã cuja imantação traga o macho que adentra, então possuído e possuindo, embebido na água que brota, e derramando-se também na correnteza que arrasta o derramamento desfiladeiro abaixo até o fim do abismo, onde o Homem se começa e de onde se expulsa para recomeçar, sabendo-se finito. Entretanto, quando o estuário nas entranhas não favorece o embrião, aquelas poças salobres, lá dentro, se misturam apenas para anunciar a inutilidade do deserto.
Assim foi com a InMaria: prenhez não vinha. Por mais que amiudasse ou espaçasse as tentativas, por mais que se desse os novos parceiros ou tentasse a cura em rezas, consultas e meizinhas.Convenceu-se, aí, de não se tratar de quebranto, acaso ou doença de ocasião mas de predestinação incurável e irreversível, o castigo da fogosa: manter-se sempre infecunda porque exclusivamente plena para as folganças da cama, sem qualquer outra conclusão a não ser o gozo.
Seria gozoza se provasse e aprovasse o predestino mas não, ela não. Deu-se o contrário: fastio. Ainda buscou conciliar-se com a sina, entregando-se com afinco e esmero mas, afinal, desmascarou-se o que era antes fascínio. Desinteressou-se. Esse desinteresse reinteressou os pretendentes, afoitos e aflitos. Qual nada. InMaria mudara, dispensando todos. Fez-se casta. Negou-se, renegou-se, em ensaio de autoflagelo. Pintar-se não se pintou mais. Descoloriu as roupas berrantes, aposentando decotes, alcinhas e corpetes. Elegeu o cinza e o preto, nuns cortes desenterrados de um tempo em desintonia com o seu. Cobriu-se dos ombros aos pulsos, da cintura aos tornozelos, nuns modelos de beata que escondem o colo e até quase o pescoço. Seus cabelos, antes apresentados de dar gosto, ganharam uma timidez que afunilava a moldura do rosto quando rentes ao queixo, moldando um novo formato de cabeça.
Agora estranha e inutilmente devota de sua Nossa Senhorinha do Bom Parto, agarrava-se ao manto da imagem como se a desnudasse, tão fortes eram o apego e a devoção.
- Avia, dona, dá a vez à outra, que muitas há na fila, à espera da graça de uma boa hora – lhe resmungavam as buchudas, nas proximidades do altar, estranhando que aquela mulher desbarrigada se infiltrasse no meio delas, sem precisão e coerência.
Queria a InMaria ser uma daquelas, de ventre em protuberância. Não era. Era sem fartura nos quartos e nos seios. Quisera o revés: seu umbigo em dilatação, sob a pressão de um projeto de vida que lhe povoasse o útero mas quem dera. Era só finura, esguia embora de peso bem distribuído. Sentia-se, no entanto, por dentro, frondosa. O sangue que se prenunciava pontualmente, a cada fim de mês, lhe fazia desesperançar, reconscientizando-se: sou somente uma pedra que sangra.
InMaria sublimou o desejo de não sangrar e de parir, bacorejando o despejar de quaisquer uma das parturientes, mesmo as porcas, nas pocilgas. Acalentava bacorins, burregos, bruguelos de todas as espécies e raças. Tornara-se aparadeira, uma dessas de vocação missionária. Moça que pegasse barriga e perdesse a cria, por decisão ou porventura, InMaria execrava: desperdício de Deus, meu Deus. Blasfemava. Se, ao invés disto, presenciasse um amamentar, invejava o peito.
Tão desejosa de um curumim, poderia adotar um ou mais mas não lhe servia o arranjo, só o rebento que rebentasse consangüíneo, precedido por gastura na mãe. Ter sob custódia um filho não tido, não e não e não. Pois sim. Aconteceu-lhe uma magricela, rota e desenxabida, posta às escuras na soleira da porta. E a aparição contradisse InMaria, chorosa na descoberta, redescobrindo-se naquele serzinho sexuado porém também e sobretudo estéril. Pelo menos por enquanto. Houve a adoção e o batizado. O nome da recém- chegada? TransConceição.
TransConceição de InMaria foi-se botando, no tempo. Desgraciosamente, nos primeiros anos, mas encorpando-se aos poucos, a contento. A adotante e a adotiva se davam muito, em relação solidária, de pequenos cuidados e grande afeição. Harmonizavam-se, em demanda e oferta, na carência de complemento, as duas, até que se rompeu o laço, quando a natureza, na sua ditadura hormonal, deflagrou-se.
A menina, moça flagrante, vicejou. Viçava, querente, e, logo querida, experimentou o viço. Entendeu-se habitada, feito um território, por um posseiro: sou esse espaço de engenho, essa horta, esse roçado, terra de arado; em mim se faz a safra; rapaz é coadjuvante de Deus e eu protagonizo o ovo? O futuro ali, já em gestação, e a gestante gerando perguntas que InMaria respondeu e confirmou, certificada do desenlace.
TransConceição, autocentrada, agora se bastava, excludente porque geratriz. InMaria, sem possibilidade de igualar-se à outra, absolutamente contrária, sem tir-te nem guar-te, mudou, emudeceu, retraiu-se. Voltou a ela aquela que, traída no almejo, almejou gerar.
Transcorreram luas e luas, sóis e chuvas, e, enfim, TransConceição descansou, exaurida. Houve no desgravidar a exclamação da tragédia. Dar à luz às vezes turva o nascente e o nascedouro. São os tais desígnios da Providência sobre a parida, o parido e a parteira. O imprevisível tem disso mas o disse-me-disse, ávido de explicação, explica até o inexplicável e explicou: foi improvidência da InMaria que aparando desamparou a grávida e no seu mau-olhado secou o anjinho. Soprar em garrafa ou tomar garrafada, nada facilitou a vinda da natimorta que, no seu desviver, terminou por morrer e matar.
Ninguém se conformou com os passamentos, ainda mais com o da pagã. Apenas InMaria aquiesceu àquilo, de estalo, numa heureca: mais que um lugar, mulher é Pessoa, mais valendo o si do que o em si. E aí, só aí, a dor, lá nela, também descansou.
ETC
Se se alongava o sol, em estiagens, ela –aquela, a contrária – postava as mãos em muito latinório, implorando que aparecesse a chuva. Nobis, sempiterna, oblatis, domine e outros tantos dizeres de missal, entretanto, não eram suficientes. Maldizia os benditos. Sertão seu esturricava e sua Nossa Senhora estava indiferente às salve-rainhas.
A contrariada não tinha desesperança, insistindo, no entanto. Então peregrinou com pedras na cabeça e ainda molhou com uma vasilha o ensolarado cruzeiro. Pegou-se com todos os santos, escorraçando um bocado deles, esses imprestáveis que – mesmo desterrados dos seus altares – não intervinham junto a São Pedro e São José. O interesse da desatendida não advinha querer boa safra, cacimba farta, sede saciada, rios engordados. Não. Pouco se lhe dava se o gado amofinasse e retirante surgisse. Era tão somente que o chover lhe trazia uma alegria muito sua, sem o que não lhe dava gana à vida. Por ela, o dia seria sempre chuvoso: o matagal verdejando, os garranchos florindo, o verão desistindo de vir.
Porém, pro seu descontentamento, o aguaceiro não vinha mas a suplicante ignorada perscrutava toda possibilidade de mudança de estação. Jumento acender as ventas, a rã se impacientar, a manhã de repente se avermelhar, meio mudo lhe prenunciava alguma água. Inspecionava no João-de-barro a construção da casinha e, na beira do rio, o vai-e-vem das formigas. Esperava impacientemente a floração dos cardeiros, desvendava o segredo das nuvens e o posicionar das luas. Qualquer alvoroço das ovelhas lhe espevitava a esperança. Então, fervia mais e mais o seu Creio-em-Deus-Pai, que repetia. O Todo-Poderoso todavia, continuava impotente. Mais de uma vez, ela afrontou o sol, no nascente. Ao meio-dia, praguejou porque em pleno solstício nem ainda treviscava .
A ressequida se convenceu desse castigo e da contrição que haveria de cumprir, em penitência e oferenda. Serpenteou pelas procissões, acompanhando andor e pálio; pajeou imagens; inventou romarias; devotou-se aos cânticos, deu-se as supertições; jurou promessas; seguiu novenário; flagelou-se; sujeitou-se a purgações; bateu matracas; curvou-se em rogatórias. E nada de ao menos chuviscar. Nenhum nublado. Nuvens figurativas contavam estórias, metamorfoseando monstros e perfis. O azul, no céu, se impunha e a sedenta na expectativa, ávida de cinza: por que não neblina? Choviam somente os seus olhos de capionga, carecendo de adjutório ante a imponderabilidade da reversão. Restava esperar. E esperou meses.
Até que, tarde da noite, trovejou, relampejou e amanheceu chovendo. Pela fresta, avistei seu desvario, encharcando o vestido, no chuá da bica. Satisfação, depois de tanta espera, foi tanta, que o açude no coração da empantanada sangrou. Sangradouro intumesceu tronco, arrastou folhas. Invernou o lugarejo. Invernia de dias e dias, casas esborrotando, ruas de barro escorrendo, rios posseiros das pontes, ir-e-vir se inundando, imersão do adro da Matriz, morte transbordante, derramamento de telhados. Inundação preguiçosa de baixar. Enchente tamanha que a euforia da desejosa se cansou de comemorar. Seu desejo banhou-se, nadou que se enfadou. Tempestade estirou-se demais e a querente desquis. Reentristeceu.
Aí, mergulhou outra vez na contra-corrente dos salmos, tentando deter a enxurrada, clarear o nevoeiro, apagar os relâmpagos, abafar as trovoadas, dissolver a escuridão dos dias. Esconjurou. Teimou em reza-forte, amassou rosários, valeu-se de outros padroeiros, benzeu-se em cruz, sacudiu campainhas, acendeu castiçais, consagrou-se ao genuflexório. Atormentou a santidade de Jerônimo e de Bárbara com pedidos de calmaria. Não se dissiparam raios e estrondos. Na parte quase enxuta porque mais alta, do quintal, rabiscou com o calcanhar uma roda radiosa, arremedando o sol. Ao relento, mostrou uma estampa da Sagrada Família. Inutilmente. Mais se adensaram as trevas chuvosas. Aguaceiro se demorou, castigando. Toró troou em demasia, até enjoar, por si.
De toró a chuvarada, de chuvarada a chuvinha, de chuvinha a chuvisco, e, enfim, outro tempo, reazulado e morno. Quarando, o povoado foi aos poucos se reajustando ao suor, ao sopro da poeira. A insatisfeita se satisfez, com ar de riso que durou não muito. Logo, a vidinha se repetiu, ensolarando, ensolarando, de roldão. O rio se filigranou, o açude emagreceu. Seca cotidiana se acomodou, no de sempre. E aí, na insaciada redespontaram uns lundus, o banzo e, de novo, uma vontade que chovesse. Etc.